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quinta-feira, 25 de maio de 2017

Costume

A gente se acostuma, mas não devia...
A gente se acostuma a morar no apartamento dos fundos e a não ter outra vista senão das janelas ao redor. E por não ter outra vista, se acostuma a não olhar para fora, e por não olhar para fora, se acostuma a não abrir a cortina e por não abrir a cortina, se acostuma a ligar as luzes mais cedo. E à medida que se acostuma, se esquece do sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque já tá na hora. A tomar café correndo porque tá atrasado, comer um sanduíche porque não dá tempo de almoçar, sair do trabalho à noite sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a ver e ler sobre a corrupção. Aceitando sua existência, aceita que haja números e roubos, e aceitando os números aceita não acreditar na justiça e nas suas soluções.
A gente se acostuma a pagar por tudo que deseja e necessita, pagar mais do que a coisas valem, saber que cada vez vai pagar mais e a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas com ar condicionado e à lenta morte dos rios.
A gente se acostuma a não ouvir passarinho, não colher fruta do pé, não ter sequer uma planta em casa.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer, e tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o trabalho tá duro, a gente se consola pensando no final de semana, e se no fim de semana não há muito o que fazer, inventa algo para tentar ser feliz: um encontro onde a companhia é menos importante que a bebida, um esporte onde a vitória é mais importante que a integridade física, uma reunião de amigos onde é mais importante falar mal dos ausentes do que bem dos presentes.
A gente se acostuma a ensinar às crianças, não o que é correto, mas o que é vantajoso. 
A gente se acostuma a sorrir sem receber um sorriso de volta, a ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma. Mas não devia...

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Um Novo Olhar

A aproximação da terceira idade traz junto consigo maior tolerância com todos, dores nas juntas, menores exigências com tudo, remédios de uso contínuo e experiências adquiridas para usar e abusar. Traz também algumas doenças que a gente nem sabia que tinha, mas que os médicos - sempre eles - estão aí para detectar.
Foi assim que me vi sentado na recepção de uma clínica oftalmológica para fazer uma cirurgia plástica que retiraria parte de minhas pálpebras e levantaria meu olhar, a fim de que enxergasse melhor. Eu nem sabia que enxergava mal!
O local era povoado por pessoas um pouco mais idosas do que eu, o que me deu uma leve sensação de que eu estou envelhecendo mais rápido do que gostaria. Meu labirinto vem me dizendo isso faz tempo, eu que insisto em não ouvi-lo - e duplo sentido é pouco para uma frase dessas.
Quando levado para a preparação à cirurgia, uma moça com uma linda carinha de lua cheia dava instruções de como proceder com uma voz aveludada que diminuía até pressão alta. Até que chegou a hora da cirurgia. Você sabia que o cirurgião traça o que vai fazer no seu corpo? Onde ele fez curso de desenho? E se ele desenhar mal?
Como, segundo os médicos, a cirurgia era simples - porque não eram os olhos deles que seriam cortados - a anestesia foi local. Além da estranha sensação de estar sendo cortado ao vivo e a cores, só que sem dor, havia o cenário. Não me refiro à decoração do bloco cirúrgico, mas aos cirurgiões que me operavam - sim, eram dois, um em cada olho, ao mesmo tempo. Seus comentários em mediquês, uma linguagem provavelmente aprendida na Terra Média dos Hobbits, era intercalada com diálogos absolutamente mundanos, que variavam da oscilação do dólar ao suicídio de Champignon, ex-vocalista da banda A Banca, sucessora da Charlie Brown Jr. Mas que falta de profissionalismo, porque não prestam atenção no que estão fazendo? Mais preocupante ainda era a eloquência que às vezes se estabelecia: o timbre se elevava e os caras com bisturis na mão vociferavam impropérios contra a Dilma e seus médicos cubanos! E eu ali, ouvindo tudo, inclusive quando um deles perguntou: você não acha que isso está sangrando muito? Acho que eu preferiria ter ficado enxergando menos. Enfim, depois de duas horas deixei aquele lugar com dois curativos muito bem feitos, um novo olhar para o mundo daqui a algum tempo e uma certeza: eles, os todo-poderosos médicos, são normais! 

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

13 na cabeça!

E chegou 2013! Para quem achava que isso não aconteceria, porque dia 21/12/2012 o mundo ia acabar, acabou. O ano, não o mundo! Aliás, que números bacanas hein? 21, 12 (que é o contrário de 21) mais o dois (porque tinha dois números antes), o zero (que não quer dizer nada) e o 12 de novo! Porque não joguei isso na Mega Sena da Virada? Provavelmente ganharia com mais 246.783.691 pessoas, o que daria menos de um real por cabeça. Ou seja, economizei dois reais.
Além de já trazer o 13 no nome, o ano tem também duas sextas-feiras 13, uma em setembro e outra em dezembro - e nenhuma em agosto - para desespero dos triscaidecafóbicos. Para quem ainda não sabe (tem quem  não sabe?), são pessoas que sofrem de triscaidecafobia, ou o medo irracional do número 13, que pode ser considerado uma doença. Acho que ainda tenho mais medo de assalto, final de feriadão na freeway e da TPM da estagiária. Melhor: a TPM dela vem primeiro, um risco cíclico inevitável.
Para quem ainda acha que o 13 dá azar, o PT - 13 neles! - está a tanto tempo no poder que minha filha nem era casada quando eles assumiram o poder, eu já tenho netos que me ensinam informática, e eles seguem lá: pode isso dar azar? Só se for para nós.
Mas 2013 promete ser um grande ano: as previsões são de retomada econômica, mais empregos, melhores salários e o principal: a Copa das Confederações vem aí! Sim, porque isso é o que importa. Novos estádios, milhares de turistas - considerando-se que argentinos e uruguaios são turistas - engarrafamentos, transporte público sucateado, aeroportos lotados, rede de hotéis sem uma infraestrutura condizente e nosso futebol desfilando incompetência e desorganização. Pensando bem, 2013 vai dar um azar! É certo que vai dar errado! Que os deuses nos protejam!

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Independência ou feriadão?


Independência: sf (in+dependência) Estado ou qualidade de independente; Libertação, restituição ao estado livre; autonomia. 
A definição do dicionário é técnica, fria. Quando o Brasil comemora 190 anos, vivemos um momento de afirmação. Economia em alta, empregos crescendo, empresas se desenvolvendo, mercado aquecido. As classes mais baixas minguam, a classe média cresce. Estamos, depois de dois séculos, nos tornando independentes. 
Sete de setembro: descontadas as iniciativas oficiais (que não são iniciativa, senão obrigação), nada acontece. Nenhum anúncio no jornal, no rádio ou na TV exalta essa data. As pessoas passam ao largo de qualquer celebração, preocupadas apenas em usufruir do feriadão. Ninguém levanta uma bandeira, ninguém veste verde-amarelo. Nenhuma reflexão ou avaliação sobre como chegamos até aqui ou o que faremos daqui para frente.
Em plena campanha eleitoral, que define o futuro de nossas cidades - a primeira e mais importante célula do tecido social - só o que percebemos é indiferença. Políticos são corruptos, política não presta. 
Na verdade, perdemos a noção de cidadania, pátria e comunidade. Confundimos povo e nação com governo. Temos vergonha ou ódio daqueles que nos governam e confundimos isso com país. O Brasil não tem culpa das nossas escolhas, mas sofre suas consequências. Vendemos nosso poder de decisão - ou pior, não o valorizamos - e depois nos quedamos frustrados com os rumos que aqueles a quem concedemos o poder de decidir dão ao nosso país. O gremista não vota no colorado e o colorado não vota no gremista. Mas o que futebol tem a ver com os destinos do Brasil? Depois vociferamos impropérios na frente da televisão, indignados com as falcatruas que desfilam na nossa sala. Lembre-se: você quis assim. Mas agora não é hora de pensar nisso.O feriadão nos espera!

domingo, 22 de julho de 2012

Sorria!



Na frente da câmara fotográfica, ninguém precisa nos dizer "Sorria!" Espontaneamente, simulamos grandes alegrias, sorrindo de boca aberta. Em regra, hoje, os retratos são propaganda de pasta de dentes - se você não acredita, passeie pelo Facebook, onde muitos compartilham seus álbuns, rivalizando para ver quem parece melhor aproveitar a vida.
O hábito de sorrir nos retratos é muito recente. Angus Trumble, autor de "A Brief History of the Smile" (Uma Breve História do Sorriso), assinala que esse costume não poderia ter se formado antes que os dentistas tornassem nossos dentes apresentáveis.
Além disso, os retratos pintados pediam poses longas e repetidas, para as quais era mais fácil adotar uma expressão "natural". Outra explicação é que o retrato, até a terceira década do século 20, era uma ocasião rara e, por isso, um pouco solene.
Mas resta que nossos antepassados recentes, na hora de serem imortalizados, queriam deixar à posteridade uma imagem de seriedade e compostura; enquanto nós, na mesma hora, sentimos a necessidade de sorrir - e nada do sorriso enigmático do Buda ou de Mona Lisa: sorrimos escancaradamente.
Certo, o hábito de sorrir na foto se estabeleceu quando as câmaras fotográficas portáteis banalizaram o retrato. Mas é duvidoso que nossos sorrisos tenham sido inventados para essas câmaras. É mais provável que as câmaras tenham surgido para satisfazer a dupla necessidade de registrar (e mostrar aos outros) nossa suposta "felicidade" em duas circunstâncias que eram novas ou quase: a vida da família nuclear e o tempo de férias.
De fato, o álbum de fotos das crianças e o das férias são os grandes repertórios do sorriso. No primeiro, ao risco de parecerem idiotas de tanto sorrir, as crianças devem mostrar a nós e ao mundo que elas preenchem sua missão: a de realizar (ou parecer realizar) nossos sonhos frustrados de felicidade. Nas fotos das férias, trata-se de provar que nós também (além das crianças) sabemos ser "felizes".
Em suma, estampado na cara das crianças ou na nossa, o sorriso é, hoje, o grande sinal exterior da capacidade de aproveitar a vida. É ele que deveria nos valer a admiração (e a inveja) dos outros.
De uma longa época em que nossa maneira e talvez nossa capacidade de enfrentar a vida eram resumidas por uma espécie de seriedade intensa, passamos a uma época em que saber viver coincidiria com saber sorrir e rir. Nessa passagem, não há só uma mudança de expressão: o passado parece valorizar uma atenção focada e reflexiva, enquanto nós parecemos valorizar a diversão. Ou seja, no passado, saber viver era focar na vida; hoje, saber viver é se distrair dela.
Ao longo do século 19, antes que o sorriso deturpasse os retratos, a "felicidade" e a alegria excessivas eram, aliás, sinais de que o retratado estava dilapidando seu tempo, incapaz de encarar a complexidade e a finitude da vida.
Alguém dirá que tudo isso seria uma nostalgia sem relevância, se, valorizando o sorriso e o riso, conseguíssemos tornar a dita felicidade prioritária em nossas vidas. Se o bom humor da diversão afastasse as dores do dia a dia, quem se queixaria disso?
Uma pesquisa sobre efeitos paradoxais de valorização da felicidade apontam que, em tese, essa valorização ajuda a alcançar o que é valorizado - por exemplo, quem valoriza boas notas, estuda mais, etc. Mas eis que duas experiências complementares mostram que, no caso da felicidade (mesmo que ninguém saiba o que ela é exatamente - ou talvez por isso), acontece o contrário: valorizar a felicidade produz insatisfação e mesmo depressão. De que se trata? Decepção? Sentimento de inadequação? Um pouco disso tudo e, mais radicalmente, da sensação de que a gente não tem competência para viver - apenas para se divertir ou, pior ainda, para fazer de conta. Como chegamos a isso?
Pouco tempo atrás, na minha frente, uma mãe conversava pelo telefone com o filho (que a preocupa um pouco pelo excesso de atividade e pela dispersão). O menino estava passando um dia agitado, brincando com amigos; a mãe quis saber se estava tudo bem e perguntou: "Filho, está se divertindo bem?".

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Até quando?

Quando o sistema atual de avaliação para concessão de CNH - Carteiras Nacional de Habilitação - surgiu lá no governo Fernando Henrique Cardoso, houve uma confiança nacional: finalmente o país teria condutores qualificados para assumir uma responsabilidade tão grande como assumir o volante de um veículo. Exames médicos e psicológicos, qualificação e avaliações teóricas e práticas referendavam essa segurança. 
Em menos de dois anos veio o baque: condutores que fizessem a renovação da CNH - exigida a cada quatro anos -  não precisariam mais fazer exame psicotécnico. Os inteligentes de plantão concluíram que uma pessoa mantém seu padrão psicológico absolutamente imutável durante 60 ou 70 anos. Quando a carnificina grassa nas ruas e estradas do país, é culpa da via pública, da velocidade e/ou do álcool. Nunca é culpa de pessoas sem a menor condição de dirigir, exatamente porque não são periodicamente avaliadas para tal. A pergunta que não quer calar é: até quando? Até que a filha de um destes inteligentes seja arrastada pela rua por um motorista fora de si? Até que um caminhão carregado dirigido por um tresloucado invada o pátio de uma creche na hora do recreio? Quantas pessoas deverão morrer até que os pseudogovernantes pseudointeligentes atentem para o problema? Por que a sociedade assiste à esse morticínio catatônica? Até quando?      

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Reparação ou condenação?

Os ministros Supremo Tribunal Federal decidiram recentemente, e por unanimidade, que as cotas para negros no acesso às universidades, dentre outras, são constitucionais, portanto válidas, e assunto encerrado. 
Aqui do meu canto, trabalhando e sujeito às leis de mercado como todos os sujeitos, modestamente discordo. Não uso toga, barrete ou capeiro, não sou da área do direito, sequer estudei a legislação para escrever isto. Mas talvez eu esteja vivendo uma realidade social mais próxima da normalidade que aquela vivida por Suas Excelências na Terra da Fantasia chamada Brasília. Ou dos Magníficos Reitores (?) das universidades federais, encastelados em seus suntuosos gabinetes. E isso me permite e autoriza essa digressão.
É inconcebível como pessoas pretensamente letradas (?) e preparadas (?) para exercer o poder de decisão sobre a vida de milhões de pessoas pode deixar-se iludir tão facilmente e flertar de forma tão abjeta com os holofotes midiáticos. Isso tem nome: vaidade. 
As cotas raciais são, por si só, o racismo institucionalizado, uma vez que reconhecem definitivamente que os negros precisam de tratamento especial, assim como os deficientes físicos, por exemplo. Sob o manto do resgate histórico, mancham a igualdade racial que pretendem defender: agora, todos são iguais perante a lei, mas os negros são mais iguais que os outros. Punem com a desigualdade e a falta de critérios equânimes quem nada tem a ver com o disparate que a História escreveu, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Sem considerarmos que aquela sociedade não fez nada de ilegal: naquele tempo, escravidão, mais que uma realidade execrável, era um lucrativo negócio. Os integrantes da sociedade brasileira do século XXI são declarados culpados por atrocidades cometidas há mais de 200 anos, e condenados. Mais recentemente, os torturadores da extinta ditadura militar foram todos anistiados e não pagarão pelos seus atos, tão ou mais brutais do que aqueles cometidos dois séculos atrás. Nós, cidadãos comuns, fomos condenados à prisão perpétua da discriminação, sem direito à defesa. Nem as democracias mais avançadas do planeta trataram o assunto com tanta insensatez. 
Tracemos um cenário para exemplificar: qual legitimidade teria o filho de um ministro do STF, negro, sustentado pelo pai, do qual todos conhecemos a capacidade econômica, de pleitear uma vaga em uma instituição pública pelo sistema de cotas? O que estamos resgatando quando permitimos essa possibilidade? O que ilegitima a mesma pretensão a um aluno de cabelos loiros e olhos azuis retirado de um orfanato por uma família de poucas posses mas de grande coração? Quem precisa mais de tratamento diferenciado e reais oportunidades?
É tão óbvia a solução que parece impossível de ser percebida por quem só contempla propostas megalomaníacas. Até as estátuas das praças e as ocas dos índios sabem: a oportunidade de acesso a ensino fundamental e médio, público, gratuito e de qualidade é que vai permitir que negros, índios, brancos e todas as outras cores possam encarar um processo seletivo em igualdade de condições. Educadores qualificados, com remuneração condizente, planos de carreira que contemplem merecimento, avaliações por desempenho e real contribuição à pedagogia é a singela solução de todos os problemas. Só não vê quem não tem capacidade para isso. Ou está ofuscado pelas luzes da ribalta, como os ministros do STF e os reitores eleitoreiros das universidades, por exemplo. O que dá no mesmo.