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quinta-feira, 25 de maio de 2017

Costume

A gente se acostuma, mas não devia...
A gente se acostuma a morar no apartamento dos fundos e a não ter outra vista senão das janelas ao redor. E por não ter outra vista, se acostuma a não olhar para fora, e por não olhar para fora, se acostuma a não abrir a cortina e por não abrir a cortina, se acostuma a ligar as luzes mais cedo. E à medida que se acostuma, se esquece do sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque já tá na hora. A tomar café correndo porque tá atrasado, comer um sanduíche porque não dá tempo de almoçar, sair do trabalho à noite sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a ver e ler sobre a corrupção. Aceitando sua existência, aceita que haja números e roubos, e aceitando os números aceita não acreditar na justiça e nas suas soluções.
A gente se acostuma a pagar por tudo que deseja e necessita, pagar mais do que a coisas valem, saber que cada vez vai pagar mais e a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas com ar condicionado e à lenta morte dos rios.
A gente se acostuma a não ouvir passarinho, não colher fruta do pé, não ter sequer uma planta em casa.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer, e tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o trabalho tá duro, a gente se consola pensando no final de semana, e se no fim de semana não há muito o que fazer, inventa algo para tentar ser feliz: um encontro onde a companhia é menos importante que a bebida, um esporte onde a vitória é mais importante que a integridade física, uma reunião de amigos onde é mais importante falar mal dos ausentes do que bem dos presentes.
A gente se acostuma a ensinar às crianças, não o que é correto, mas o que é vantajoso. 
A gente se acostuma a sorrir sem receber um sorriso de volta, a ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma. Mas não devia...