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quarta-feira, 25 de abril de 2012

Solidariedade à força.


Alguns dias atrás um pequeno empresário, às voltas com a fiscalização tributária, tentava negociar suas dívidas de forma a regularizar seu negócio. Indignado com o valor absurdo das multas e encargos que lhe eram imputados, sem contar o valor devido propriamente dito, soltou uma pérola: Eu não sonego, eu viabilizo minha empresa! Ante o espanto do representante do erário, explicou: desafio qualquer um a me apresentar uma pequena ou micro empresa que consiga manter rigorosamente em dia todos os seus tributos, repassar esses custos para seus produtos, enfrentar o contrabando e a importação chinesa e depois dizer que teve lucro. Ou vai mentir que pagou seus impostos, ou mentirá que teve lucro, ou os dois. 

Estamos diante de um descalabro e de uma ironia que beira o fantástico: os empresários sonegam, os governos desviam o que ainda conseguem receber, os governantes fingem que resolvem os problemas da população e nada acontece. Quer dizer, acontece sim: a corrupção grassa em todas as esferas do Executivo, Legislativo e Judiciário do país, drenando um volume impressionante de recursos que daria para construir dois Brasis. 
Enquanto isso, um outro Brasil é citado no mundo inteiro como um dos povos mais dedicados ao próximo e preocupado com o bem estar de seus semelhantes. Para isso, organiza-se em um sem-número de entidades sociais e não-governamentais que oferecem apoio aos mais diversos segmentos carentes da população. Afligidos por doenças, catástrofes e falta de recursos de toda ordem sempre encontram socorro em voluntários dispostos a colaborar de todas as formas para minimizar o sofrimento de desconhecidos. Esse comportamento social, embora emocionante e comovente, também, e eu diria principalmente, é resultado da inércia de quem tem a responsabilidade de resolver. Impressionou aos voluntários brasileiros que se dedicaram a trabalhar na tragédia recente do tsunami no Japão a frieza com que os japoneses encaravam o desastre e a quase apatia diante do acontecido. Logo descobriu-se que esse comportamento era resultado de uma certeza: havia um governo, sustentado por eles, que se encarregaria de resolver a situação. Na mesma época, deslizamentos causados por fortes chuvas em Teresópolis/RJ destruíram a maior parte da cidade. Um ano depois desses acontecimentos (sendo que no Japão ainda houve o agravante da explosão de uma usina nuclear), no Japão, pessoas e empresas foram realocadas, estradas e aeroportos reconstruídos, serviços de saúde e saneamento retomados e programas de geração de emprego e renda implementados. Em Teresópolis ainda não conseguiram sequer limpar a lama das ruas e há sérias denúncias de desvio do dinheiro público (que saiu do seu e do meu bolso) destinado à reconstrução da cidade. É daí que vem a revolta do pequeno empresário do início deste relato. Ele não está disposto a contribuir com uma máquina que não funciona. E depois vai ter de pagar seguro, assistência médica e aposentadoria privados, além de ajudar os desafortunados que a incompetência governamental não conseguiu alcançar. O que ele faz pode não ser legal, mas quem acha que ele não tem nenhuma razão, que atire a primeira pedra. Se não tiver telhado de vidro, é claro.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Abaixo a Arena!



O noticiário é pródigo em coberturas esportivas, especialmente futebol. Infelizmente, e cada vez mais frequentemente, os eventos esportivos estão sendo destaque também nas páginas policiais. Brigas, pontuais ou generalizadas, dentro ou fora dos estádios, mas sempre tendo como mote o futebol, terminam em famílias e comunidades chorando mortos ou tratando feridas e sequelas. Dias atrás, postei um singelo e bem humorado comentário sobre futebol numa rede social: recebi uma torrente de respostas grosseiras, ameaçadoras e de baixo calão, todas partindo de conhecidos ou seus amigos virtuais. Nenhum deles estava fazendo-o no anonimato, estavam lá seus nomes e suas fotos. Pessoas aparentemente serenas e tranquilas perderam a compostura frente a uma brincadeira: a pseudo-agressão à sua paixão esportiva.
Parece necessária nossa reflexão em busca das razões desse comportamento, que deixou de ser individual para tornar-se social. O que motiva esse procedimento? Entre tantas possibilidades, ouso levantar uma que pode causar polêmica: a forma como estão vendendo esse lazer chamado futebol para seu público. A diversão virou negócio. Nos negócios, é preciso ganhar, sempre. Jogos viraram batalhas, campeonatos e copas transformaram-se em guerras. Na guerra dos campeonatos, que valem milhões, os responsáveis elaboram a transformação: uns contratam lutadores e não jogadores. Outros mostram sua identidade em camisas ensanguentadas. A mídia adorou, o consumidor delirou: violência virou garra, pancadaria tornou-se coragem. Hoje, jogadores são guerreiros, gladiadores, heróis. Torcedores são hordas que invadem, tomam de assalto, cantam cânticos de guerra e intimidam adversários à exaustão. Jogar em casa é a glória, jogar fora é perigoso. Estádios viraram arenas, onde se morre ou se mata. Espíritos devidamente armados, todos à arena. Fazemos parte de um exército. Placares eletrônicos mostram seus jogadores como soldados, prestes a entrar num campo de batalha, dispostos a dar a vida pela vitória. Com a adrenalina nas alturas, muitos torcedores não sabem distinguir lazer e diversão da competição, onde o prêmio é a morte do oponente. Sai de cena o ser humano, lógico e racional; entra o animal, feroz e determinado: é matar ou matar. Pancada no meu jogador é falta, urros de revolta, dentes à mostra. Pancada no adversário é o êxtase: na próxima, quebra, ou melhor, mata! Juízes que deixam o jogo correr são os melhores. Os que punem a violência só atrapalham o espetáculo.
Quando o jogo termina essa brutalidade ganha as ruas, contamina os comportamentos e a guerra se generaliza, seja nas empresas, nas casas ou no trânsito. Nos quedamos catatônicos, impotentes, incapazes de entender o que está acontecendo. Os dirigentes falam em paz, mas seus atos incitam a guerra.
É tempo de assumirmos nossa responsabilidade sobre o que nossa paixão esportiva está fazendo com nossa sociedade. Ou, vai se tornar realidade a música do Guns and Rose’s, executada como trilha sonora em um estádio estes dias na apresentação dos jogadores: Welcome to the Jungle, bem-vindo à selva.
Voltem os estádios, abaixo as arenas! Viva o futebol, abaixo a batalha!

sábado, 3 de dezembro de 2011

Dia de Futebol


Domingo de decisão. Desta vez, sai um campeão. Última rodada, como deve ser um campeonato emocionante. Uns jogam para vencer, outros apenas para não perder. E há até alguns que jogam pelo simples prazer de não deixar que os outros vençam. Jogadores focados, imprensa instigante e torcedores ensandecidos rumam para as arenas como gladiadores dispostos a morrer pela causa. Peraí: que causa?
É interessante observar como as pessoas se mobilizam (ou são mobilizadas) por fatores sem nenhuma importância social, atentas apenas ao apelo do momento. O jogo de futebol e o paredão do reality show são apenas amostras do movimento que a massa catatônica faz sem nem saber direito a razão. Vamos combinar que aquela atração televisiva, cheia de atores de araque, travestidos de vida real, não vale uma ligação, quiçá várias. E que jogo de futebol é um espetáculo absurdamente caro para seu público. Quando é espetáculo, porque na maioria das vezes é um joguinho, vaiado boa parte do tempo. Sem nenhum conforto, mínima atenção ou respeito, tratado como uma boiada rumo ao matadouro, lá vai o torcedor para o estádio. Perdão, arena, porque agora ele é um lutador, que vai vencer a batalha contra esse inimigo atroz que cometeu o supremo pecado de gostar de outra cor. Mas isso tudo não importa, tudo vale pela catarse do gol. E se não houver? Ah, que pelo menos meu jogador quebre a perna daquele desgraçado que fez um gol em nós. Se nada acontecer, vou ter que armar um sururu de caroço com a torcida adversária, dar e levar alguns socos e pontapés, com sorte sair vivo, e na segunda contar para os amigos, com o peito estufado, como foi o domingo de futebol.

Na correria da emoção, nem percebi o menino franzino, de pés descalços, que pedia esmola, quando entrei no portão do estádio. Na saída, furioso com a derrota ou embriagado pela vitória, mal vislumbrei aquele prédio velho perto do estádio, onde centenas de idosos sem recursos clamam silenciosos por ajuda. E muito menos aquele menino chato, que voltou a pedir esmola, agora no semáforo onde parei. Fechei o vidro do carro. Essas coisas não são minha responsabilidade. Importante mesmo é a partida de futebol.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A mão e a palmatória





Somos a mão e a palmatória
As costas e a chibata
somos nosso próprio castigo.

Fazemos as leis e as transgredimos,
pagamos as placas, pagamos os guardas
e recebemos as multas.

Elegemos os governos por conchavos interesseiros
e depois reclamamos que nos oprimem
pichamos o muro das escola
que nos ensinou a escrever.

Temos muitas amigas, perenes ou passageiras
a quem oferecemos nosso mais profundo respeito
e magoamos a mãe dos nossos filhos.

Lavamos com sabonete refinado
as mãos antes do furto
e o corpo antes do adultério.

Plantamos no mesmo vaso
a rosa que perfuma
e a papoula que mata.

Clareamos os dentes para o sorriso maldoso
sarcástico, provocador
e atendemos nosso cliente sem olhar na face
a menos que nos traga um excelente negócio.

Sujamos o chão que alguém varreu
reclamamos da refeição que alguém preparou
com o dinheiro que às vezes nem é nosso.

Temos preguiça de estudar
e queremos saber mais que os outros.
Roubamos horas de trabalho de quem nos paga
sem qualquer pudor.

Ostentamos rostos que não são nossos
elaborados pela estética
junto de um caráter que também não temos.

Desmatamos florestas
juntamos a lenha
e acendemos o fogo do nosso próprio inferno.

Sujamos a água de um jeito
que não conseguiremos limpá-la
e morreremos de sede.

E depois ainda nos proclamamos inteligentes.
(Joel Gonçalves)

domingo, 25 de setembro de 2011

Sobre paixão e rotina


O que leva o homem à impotência é o cuidado. 
O que leva a mulher à frigidez é o cuidado. 
O excesso de cuidado. Cuidado demais ataca. 



Nunca vi uma mulher ou um homem gostar sem criticar. 
O embaraço do sexo não decorre da ausência de intimidade, mas da intimidade. E da cobrança que vem com ela. Mais fácil gozar com estranhos. 

Depois de partilhar meses e cadernos de jornal com nosso par, abandonamos o elogio. Passamos a cobrar e expor os defeitos para que sejam corrigidos. É o cigarro, é a alimentação, é a distração, é o pouco caso com o dinheiro, é a indeterminação do trabalho, é a preguiça. A convivência traz a preocupação com o namorado ou a namorada e uma esquisita vontade de interferir. Entre conhecer e mandar, é um passo. Ou um tropeço. As mais duras agressões não provocam hematomas, ocorrem em nome da sinceridade. 

O amor é confundido com pancadaria. Um teste de resistência. Uma prova de esgotamento nervoso. Se o outro não quer, que vá embora, que desista do prêmio maior que é a confiança. 

Há uma visão sádica que não ajuda nem o masoquista. Falta medida. Falta parar e recomeçar o namoro. Falta esquecer e perceber que o próprio passado não é imutável, não existe certo ou errado, que nem tudo por isso é duvidoso. 

A eficácia mata o erotismo. O aproveitamento total do tempo do relacionamento não colabora com a vaidade. Custa um agrado antes de transar? Uma meia-luz de palavras? 

Não estou pedindo para mentir, muito menos fingir, mas falar um pouco bem para acordar os ouvidos e despertar o interesse. 

No início, os joelhos são venerados, os ombros recebem moldura de madeira, os cabelos são alisados com a decência de um espelho. As expressões afetuosas vão e voltam, repetidas com diferentes timbres. Todo homem no começo é, ao mesmo tempo, um tenor, um barítono e um baixo. Toda mulher no começo é, ao mesmo tempo, uma soprano, uma mezzo e uma contralto. Dependendo da região que toca, a voz muda. 

Com a relação firmada, a excitação torna-se automática. O corpo tem que pegar no tranco. 

A devassidão é trocada pela devassa terapêutica. Desculpa e por favor saem de moda. Como existe o trabalho, a casa, o dia seguinte e terminou a paixão (e somente os apaixonados são sobrenaturais e não sentem cansaço), o sexo pode ser mais prático, mais direto, pode até não ser. Na cama, estaremos falando dos problemas, das contas, do que deve ser mudado na personalidade. Não encontraremos paciência diante do relógio. Não vamos procurar cheirar a pele para atrair o beijo. 

Eu compreendo perfeitamente quando um homem broxa se a cada instante é lembrado de sua barriga. Eu compreendo perfeitamente quando uma mulher decide dormir quando sua lingerie nova não foi reparada. 

Nunca acusamos quem a gente não conhece. 

Julgamos, infelizmente, quem vive nos absolvendo. 

(Fabrício Carpinejar)